O que mudámos em 20 anos?

Foi a questão que me colocou um amigo por quem tenho grande estima. Foi esta a resposta possível.

 

Dos últimos 20 anos sou capaz de me lembrar bem dos últimos 10, vá, 15 anos, por isso não sei se serei de grande valia.

De facto Portugal mudou em algumas coisas (mal seria se o não fizesse), muito por força do maior e mais fácil (nem sempre melhor) acesso à educação, conhecimento e cultura e de uma cada vez mais vincada "ocidentalização" e "modernização" da sociedade e das cidades (ou populações, como prefiro dizer). 
Embora eu considere que toda a mudança tem geralmente um saldo positivo, é para mim difícil avaliar se fizémos um bom trabalho em função das oportunidades que tivémos: como numa empresa que lucrou 10 sabendo que podia perfeitamente ter conseguido 100. O resultado é positivo, o desempenho nem tanto.

Em particular parece-me que esta mudança, oriunda ainda da ressaca de quase 50 anos de um regime político restritivo (e cuja marca deixada a ferro quente ainda ecoa por aí) e de uns 15 ou 20 anos de desvario e deslumbre (alimentados pela integração num clube de amigos mais finos e bem vestidos que nós) nos vincaram ainda mais algumas características e comportamentos que já o Guerra Junqueiro observava há mais de 100 anos e que nos deixaram ainda mais parecidos com o tabaco: um português suave e adormecido, que prefere não fazer ondas, se calhar por lembrança dos tempos em que foi marinheiro e a vida no mar era difícil. Só é pena que este português se esqueça que a recompensa também era grande, e que como dizia certa Pessoa, "tudo vale a pena quando a alma não é pequena".

Por certo que a qualidade de vidas da generalidade das pessoas melhorou (há estatísticas na Pordata que o comprovam), que se fizeram obras memoráveis, que surjiram novos talentos. Mas parece que ficamos sempre um bocado aquém. 

É que muita gente foi mal tratada, por vezes alguns que tanto nos deram (podia falar de Saramago, Maria João Pires, Paula Rêgo, mas também de muitos outros artistas, cientistas, intelectuais, empresários, trabalhadores, gente esforçada, que guarda de Portugal amor e mágoa em quantidades às vezes comparáveis). E muita coisa correu mal (escândalos de corrupção: dinheiros da CEE, BPP/BPN; desastres naturais: madeira, fogos florestais; acidentes evitáveis: ponte entre-os-rios, sinistralidade rodoviária). E muita coisa se fez que não se podia ter feito. E muita coisa ficou ainda por se fazer.

Ainda assim soubémos sonhar alto e fazer coisas em grande e com impacto interno e externo (Expo 98, Porto 2001, Euro 2004), tivémos algumas conquistas em termos de direitos e cidadania (lei do aborto, casamento homossexual, ALGUMA legislação laboral, liberdade de expressão/imprensa), reconhecimento e interesse da comunidade internacional (UNESCO: Alto Douro, Sintra, Porto, Guimarães, Pico, Foz Coa, Fado; Nobel da Literatura Saramago; Pritzker Souto Moura e Siza Vieira, etc.), cientistas reconhecidos (António Damásio, Sobrinho Simões, Boaventura de Sousa Santos), empreendedores a valer (Salvador Caetano, Rui Nabeiro, Champalimaud, Belmiro de Azevedo) e muitas outras coisas válidas e positivas.

Mas na sua essência, não consigo deixar de achar que Portugal como um todo não mudou assim tanto: a mentalidade, as personalidades, os costumes, as lamúrias, as alegrias são as mesmas de sempre e de há muito tempo. 

Poderá ser um lugar comum, mas penso que faltam agitadores. Gente que sacuda com esta morrinha que cai um pouco por todo o país. Tivémos alguns com impacto e visibilidade nos anos 80 (Variações, Ary dos Santos, Mário Viegas, Zeca Afonso, etc.), outros que se "prolongaram" pelos anos 90 (Agostinho da Silva, Herman José, Saramago), mas menos nesta última década (poderás achar piada se incluir neste conjunto nomes como Gato Fedorento, Medina Carreira e Lobo Antunes).

C

P.S.: Reparei que menciono 3 vezes o Saramago. Não foi de propósito. Sou miserável por só ter lido um livro dele da capa à contracapa. Ainda assim é inegável que aquele homem foi dos que mais mexeu, e por mais tempo, com a cabeça dos portugueses (e não só).