FMI

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Vou... vou vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um
pouco especial: trata-se de um texto que foi escrito assim, de um só
jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro
pormenor que já não seja muito actual. Vou vos dar o texto tal e qual
como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos
peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam já não
ser muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa
atenção do que me parece ser o essencial neste texto.

Chama-se FMI.

Quer dizer Fundo Monetário Internacional.

Não sei por que é que se riem, é uma organização democrática dos
países todos, que se reunem, com umas pessoas, em torno de uma mesa,
para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que
interessam a todos... É o internacionalismo monetário!

FMI

Cachucho não é coisa que me traga a mim

Mais novidade do que lagostim

Nariz que reconhece o cheiro do pilim

Distingue bem o Mortimore do Meirim

A produtividade, ora aí está, quer dizer:

Há tanto nesta terra que ainda está por fazer

Entrar por aí dentro, analisar, e então

Do meu 'attaché-case' sai a solução

FMI Não há graça que não faça o FMI

FMI O bombástico de plástico pra si

FMI Não há força que retorça o FMI

Discreto e ordenado mas nem por isso fraco

Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco

Enfio uma gravata em cada fato-macaco

E meto o pessoal todo no mesmo saco

A produtividade, ora aí está, quer dizer:

Não ando aqui a brincar! Não há tempo a perder!

Batendo o pé na casa, espanador na mão

É só desinfectar em superprodução

FMI Não há truque que não lucre ao FMI

FMI O heróico paranóico hara-kiri

FMI Panegírico, pró lírico daqui

Palavras, palavras, palavras e não só

Palavras para si, palavras para dó

A contas com o nada há que swingar o sol-e-dó

Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó

A produtividade, ora nem mais:

celulazinhas cinzentas

Sempre atentas

E levas pela tromba se não te pões a pau

Um encontrão imediato do 3º grau

FMI Não há lenha que detenha o FMI

FMI Não há ronha que envergonhe o FMI

FMI ...

Entretém-te, filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer
que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe
gigantesca, vem-te-bem, bem te vim, Vim-me na cozinha, vim-me na
casa-de-banho, Vim-me no Politeama, vim-me no Águia D'ouro, Vim-me em
toda a parte... Vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à
mão, olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses cartazes
fora, olha a música no coração da Indira Gandi, olha o Moshe Dayan que
te traz debaixo de olho... O respeitinho é muito lindo, e nós somos um
povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito
lindo: saímos à rua de cravo na mão, sem dar conta de que saímos à rua
de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida, filho, consolida:
enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela, que o malmequer vai-te
tratando do Serviço Nacional de Saúde. Consolida, filho, consolida,
que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o
mais lindo de todos, como o Astro, não é filho? O cabrão do Astro
entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais
dormir entretido, não é? Pois claro: ganhar forças, ganhar forças para
consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional
estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho? Pois
claro!

Estás aí a olhar para mim? Estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por
minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transacção e
estás a pensar lá com os teus zodíacos: «este tipo está-me a gozar!
Este gajo quem é que julga que é?» Né filho? Pois não é verdade que tu
és um herói desde que nasceste? A ti não é qualquer totobola que te
enfia o barrete, meu grande safadote, hã? Meu Fernão Mendes Pinto de
merda! Onde está o teu Extremo Oriente, filho? A-ni-ki-bé-bé,
a-ni-ki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor. Pois claro: tu,
sozinho, consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho,
não é filho? Mal eles sabem! Pois é: tu sabes o que é gozar a vida!
Entretém-te, filho, entretém-te! Deixa-te de políticas, que a tua
política é o trabalho! Trabalhinho, porreirinho da Silva! E salve-se
quem puder, que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para
aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula,
não é filho?

A-one, a-two, a-one-two-three

FMI dida didadi dadi dadi da didi

FMI...

Camóniú, sanóvabiche!Camóne beibi, a ver se me comes! Camóne Luis Vaz,
amanda-lhe com os decassílabos que eles já vão saber o que é
meterem-se com uma nação de poetas! E zás: enfio-te o Manuel Alegre no
Mário Soares! Zás: enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro Cunhal! Zás:
enfio-te a Natália Correia no Sá Carneiro! Zás: enfio-te o Zé Fanha no
Acácio Barreiros! Zás: enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer,
e acabamos todos numa sardinhada à Integralismo Lusitano, a estender o
braço, meio Rolão Preto meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok...
Estamos numa porreira, meu, um trip fenomenal, proibido voltar atrás,
viva a liberdade... né filho? Pois, irreversível, pois claro,
irreversivelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes:
agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra!
Deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá, é assim mesmo,
cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações,
crises políticas, pá! «A culpa é dos partidos, pá! Esta merda dos
partidos é que divide a malta, pá!» «Pois, pá, é só paleio, pá, o
pessoal não quer é trabalhar, pá! Razão tem o Jaime Neves, pá!» «Olha:
deixaste cair as chaves do carro!» «Pois, pá!» «O que é essa orelha de
preto que tens aí no porta-chaves?» «Epá, deixa-te disso, não
desestabilizes, pá!» «Eh, faz favor: mais uma bica e um pastel de
nata.» «Uma porra, pá, um autêntico desastre o 25 de Abril! Esta
confusão, pá... a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a
gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide, pá, Tarrafais e o
carago... mas no fim de contas quem é que não colaborava, hã? Quantos
bufos é que não havia nesta merda deste país, hã? Quem é que não se
calava? Quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se
chama arriscar, hã? Meia dúzia de líricos, pá! Meia dúzia de líricos
que acabavam todos a fugir para o estrangeiro!... Isto é tudo a mesma
carneirada!» Oh sr. guarda venha cá – ah. Venha ver o que isto é – eh.
O barulho que vai aqui – ih. O neto a bater na avó – oh. Deu-lhe um
pontapé no cu, né filho?

Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar -
ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha
constitucional tamanho familiar, hã? Estás desiludido com as promessas
de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do
momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E
tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia: «não é nada
comigo, não é nada comigo», né? E os da frente que se lixem... E é por
isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não
querer entender nada: precisas de paz de consciência. Não andas aqui a
brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas
para cima de alguém, e atiras as culpas para os da frente, para os do
25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para
os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, hã?

FMI Dida didadi dadi dadi da didi

FMI...

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa,
não é filho? Todos temos culpas no cartório - foi isso que te
ensinaram, não é verdade? «Esta merda não anda porque a malta, pá, a
malta não quer que esta merda ande» - tenho dito. A culpa é de todos,
a culpa não é de ninguém - não é isto verdade? Quer-se dizer: há culpa
de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular, hã? Somos
todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de
vendidos, né? Somos todos ou anti-comunistas ou anti-fascistas: estas
coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para
acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé
é que se lixa, cá o pintas é sempre o mexilhão... Eu quero lá saber
deste paleio, vou mas é ao futebol, pronto! Viva o Porto, viva o
Benfica! Lourosa! Lourosa! Marrazes! Marrazes! Fora o árbitro! Gatuno!
Qual gatuno, qual caralho! Razão tinha o Tonico de Bastos para se
entreter, né filho? Entretém-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas
órfãs, que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos
administradores; entretém-te, que o ministro do trabalho trata da
saúde aos delegados sindicais; entretém-te, filho, que a oposição
parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho; entretém-te, que o
Eanes trata da saúde à oposição parlamentar; entretém-te, que o FMI
trata da saúde ao Eanes. Entretém-te, filho! E vai para a cama
descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo
neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada!
Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos, com
computadores, redes de polícia secreta, telefones, carros de assalto,
exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar
descansado que o Deng Xiao Ping está a tratar de ti com o Jimmy
Carter; o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II! Tudo corre
bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu
vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de
te convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde
valor todos os dias; vão te convencer de que a culpa é só tua se o teu
poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas
areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia, e nunca
consegue desaguar, de maneira que se possa dizer: «porra! Finalmente o
rio desaguou!» Vão te convencer de que a culpa é só tua, e tu sem
culpa nenhuma, estás tu a ver? Que tens tu a ver com isso, não é
filho? Cada um que se vá safando como puder - é mesmo assim, não é? Tu
fazes como os outros, fazes o que tens a fazer: votas à esquerda
moderada nas sindicais; votas no centro moderado nas deputais; e votas
na direita moderada nas presidenciais. Que mais querem eles? Que lhes
ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam
que te levam de mercedes, toma: para safado, safado e meio, né filho?
Nem para a frente nem para trás, «e eles que tratem do resto, os
gatunos, que são pagos para isso», né? Claro! «Que se lixem as
alternativas, para trabalho já me chega!» Entretém-te, meu anjinho,
entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam,
eles decidem por ti, decidem tudo por ti: se hás-de construir barcos
para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar
tomate para o Canadá ou eucaliptos para o Japão... Descansa que eles
tratam disso. Se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de
beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo... Descansa, não penses
em mais nada... que até neste país de pelintras se acha «normal haver
mãos desempregadas» e se acha «inevitável haver terras por
cultivar»... Descontrai, beibi, camóne, descontrai, afinfa-lhes o
Bruce Lee, afinfa-lhes a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio, dois
ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do
Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas...
Piramiza, filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o
Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho, e até já pagas
multa se não fores ao recenseamento. «Pois, pá, isto é um país de
analfabetos, pá!» Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no
pop-chula! Pop-chula pop-chula, ié, ié! Jó-ta-pi-men-ta-forever!

Quanto menos souberes a quantas andas, melhor para ti! Não te chega
para o bife? Antes no talho do que na farmácia! Não te chega para a
farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal! Não te chega para o
tribunal? Antes a multa do que a morte! Não te chega para o
cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir!
Cabrões de vindouros, hã! Sempre a merda do futuro? E eu que me
quilhe? Pois pá: sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu,
hã? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá: e eu? José Mário Branco.
37 anos. Isto é que é uma porra! Anda aqui um gajo cheio de boas
intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo - e depois? É só
porrada e mal viver, é? «O menino é mal-criado», «o menino é
pequeno-burguês», «o menino pertence a uma classe sem futuro
histórico»... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz, porra! Quero ser
feliz agora! Que se foda o futuro! Que se foda o progresso! Mais vale
só do que mal acompanhado! Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir
para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução
que vos foda a todos! Deixem-me em paz, porra, deixem-me em paz e
sossego! Não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho! Não há
paciência, não há paciência! Deixem-me em paz, caralho, saiam daqui,
deixem-me sozinho, só um minuto! Vão vender jornais e governos e
greves e sindicatos e polícias e generais para o raio que vos parta!
Deixem-me sozinho! Filhos da puta! Deixem-me só um bocadinho,
deixem-me só para sempre! Tratem da vossa vida que eu trato da minha!
Pronto, já chega! Sossego, porra! Silêncio, porra! Deixem-me só!
Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me morrer descansado! Eu quero lá
saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado! Eu quero lá saber do
Benfica e do bispo do Porto! Eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de
Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago
Carrillo e a Vera Lagoa! Deixem-me só, porra, rua! Larguem-me!
Desopila o fígado! Arreda! T’arrenego Satanás! Filhos da puta! Eu
quero morrer sozinho, ouviram? Eu quero morrer! Eu quero que se foda o
FMI! Eu quero lá saber do FMI! Eu quero que o FMI se foda! Eu quero lá
saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de
Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto! Bardamerda o FMI,
o FMI é só um pretexto vosso, seus cabrões! O FMI não existe! O FMI
nunca aterrou na Portela coisa nenhuma! O FMI é uma finta vossa para
virem para aqui com esse paleio! Rua! Desandem daqui para fora! A
culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A
culpa é vossa! A culpa é vossa...

Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe... Oh mãe...

Mãe, eu quero ficar sozinho. Mãe, eu não quero pensar mais. Mãe: eu
quero morrer, mãe. Eu quero desnascer: ir-me embora, sem sequer ter
que me ir embora... Mãe, por favor... Tudo menos a casa em vez de mim;
outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de
me encontrar e me encontrar fugindo... De quê, mãe? Diz: são coisas
que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento.

E se inventássemos o mar de volta? E se inventássemos partir, para
regressar? Partir e aí, nessa viagem, ressuscitar da morte às arrecuas
que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar... Abrir os
olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar: terra, mar, mãe...
Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto. Lembrar, nota a nota, o
canto das sereias. Lembrar o «depois do adeus» e o frágil e ingénuo
cravo da Rua do Arsenal. Lembrar cada lágrima, cada abraço, cada
morte, cada traição... Partir aqui, com a ciência toda do passado...
Partir, aqui, para ficar.

Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança
precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar,
gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes; assim
mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: «Olá, camaradas, somos
trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer: aqui está a
minha arma para vos servir.» Assim mesmo, por detrás das colinas onde
o verde está à espera, se levantam antiquíssimos rumores, as festas e
os suores, os bombos de Lavacolhos. Assim mesmo senti um dia, a chorar
de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos
corações produtores, os tambores.

«De quem é o carvalhal?» «É nosso!» - assim te quero cantar, mar
antigo a que regresso.

Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei. Neste cais eu
encontrei a margem do outro lado, «Grândola Vila Morena».

Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu, pois.

Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe. No
fundo deste mar encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a
chegar do lado de lá para ir convosco: tesouros infindáveis que vos
trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra. O meu sonho
é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não
nasceram. A minha arte é estar aqui, convosco, e ser-vos alimento e
companhia, na viagem para estar aqui de vez.

Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores
primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de
feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do
Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar,
e para o resto.

Ser solidário assim para além da vida

Por dentro da distância percorrida

Fazer de cada perda uma raiz

E, improvavelmente, ser feliz

De como aqui chegar não é mister contar

O que já sabe quem souber

O estrume em que germina a ilusão

Fecundará por certo esta canção

Ser solidário, sim, por sobre a morte

Que depois dela só o tempo é forte

E a morte nunca o tempo a redime

Mas sim o amor dos homens que se exprime

De como aqui chegar não vale a pena

Já que a moral da história é tão pequena

Que nunca por vingança eu vos daria

No ventre das canções sabedoria

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