Jeitosos,
O primeiro sms esta manhã, pela fresca, era de uma amiga a cumprimentar-me pelas celebrações dos 40 anos da “Sesame Street” e, nele implícito, os 20 anos da versão portuguesa, “Rua Sésamo”.
Depois, na primeira ida ao Google do dia encontrei uma ilustração, que amanhã talvez já lá não esteja, recheada com os personagens da versão original, a americana. Além disso, em matéria de comemorações por cá, pouco mais, tirando a mensagem electrónica de um dos meus irmãos a saudar o contributo que dei para esse projecto, que deixou saudades em muitos que o fizeram e noutros que com ele se divertiram e cresceram. Quanto a alguma espécie de contacto “oficial”, nada. Decidi telefonar ao Luís Velez, actor-manipulador do pássaro grande, Poupas, que estava a leste tanto dos 40 como dos 20; esse telefonema seguiu um impulso natural de partilha, creio, que espero completar aqui com algumas linhas, volvidas umas largas semanas desde que o realizador Rui Nunes lançou o repto nesta plataforma (serviço público, será, também?).
Antes de 1989, nunca a programação infantil tivera um projecto de tais dimensões, sendo que, o que mais aqui importa, pelo menos a mim, é o da “fantasia pedagógica”, chamemos-lhe assim, toda a estrutura invisível e visível que permitiu dar a conhecer a Portugal e aos Palop’s, uma Rua que continha um mundo personagens, letras, números e jogos. O facto de ser uma “adaptação” não diminui em nada o esforço do resultado alcançado por quem se dedicou a este projecto de corpo e alma. Pode não ter dado milhões aos cofres do Estado, certamente que não, mas muitos portugueses e africanos se divertiram, a RS deu imenso colorido à aprendizagem, levou a alegria a muitos lares em que as famílias nem a têm para dar, e por isto custou a todos nós. Quem escreve sou eu, Jorge David; tive o privilégio de viver este sonho dourado durante uns anos, a tentar dar parte da minha energia à existência do personagem Ferrão.Dizer que alguém é o personagem liquida a possibilidade de transcendência do mesmo, ainda que uma marioneta/muppet, ou seja, de existir por si; afirmo isto a partir da minha visão conceptual quanto às funções técnicas/artísticas que exerci, bem como por aquilo que julgo ter apreendido nas formações c/ Kermit Love, Nikki Tilroe e Jim Kroupa, que me permitiu integrar a equipa de actores/manipuladores durante 4 séries da Rua Sésamo, e se traduziu em cerca de seis anos de trabalho e vida.
O segredo que tentei alcançar foi o de tentar fazer crer, sobretudo às crianças, que todos aqueles personagens existiam, tal como ainda existem os personagens-fundadores, 40 anos depois, a começar pelo verde anfitrião (tudo começou com ele), sapo, Kermit, the Frog, dentro da televisão, a caixa-mágica. Se consegui alguns momentos de magia, então talvez seja possível conceber que a “anima” do tortuoso Ferrão se manifestou e assim teve consistência enquanto criatura viva; eu, tal como dois colegas que me (nos) prestaram apoio no braço direito ao longo desses anos, António Guedes Pinto e Pedro Barreiros, mediámos a sua existência (eu no tronco, cabeça, braço esquerdo e voz) e o tornámos possível.
O que talvez me tenha atraído no personagem Ferrão terá sido o facto de ele representar a “diferença” facilmente discriminada, com qualidades sobretudo subterrâneas, algo acanhado, “pudor dos seus sentimentos”, como bem definiu a realizadora Fernanda Cabral, encoberto, mais do que pelo barril, por poses excêntricas, tiradas provocadoras, imaginativas e construções absurdas; creio que o Ferrão terá sido um dos principais responsáveis por uma certa predilecção que tenho por esse tema, o absurdo, que explica, sem explicar, o sentido de muito do que somos e vivemos.
Depois da última edição, em 1994, acabou-se a Rua Sésamo portuguesa, os sucedâneos terão sido “filhos e netos”, como alguém lhes chama, mas a realidade é que, para as crianças, a oferta televisiva, sobretudo nacional, tem vindo a definhar e praticamente se resume, na grelha geral, à comida de lata que as gerações anteriores conheceram, agora produtos, essencialmente, “da realidade digital”. Depois, então, numa definição porventura exagerada, e fazendo minhas as palavras da Avó Chica num certo episódio, ficou “escuro como breu” (com o seu sotaque das beiras ouvíamos um acento no “e”, bréu), ou seja, vieram as trevas.
Não me querendo alongar demasiado, apenas gostaria de fazer algumas saudações, que não esgotam todos, apenas a algumas pessoas/personagens que me deixaram uma marca emocional: Rui Nunes, realizador, por razões óbvias e suspeitas, tornámo-nos amigos, mas devo dizer que, de entre todos os que estiveram ligados de uma ou de outra maneira, é, ainda hoje o maior entusiasta que conheço e, porque não dizê-lo, cultor, sendo que esta página/grupo de amigos da RS isso o atesta. A já citada Fernanda Cabral, Ana Pitas, anotadora, Manuel Petrónio, produtor inicial, Luís Velez, no Poupas, Vítor Norte, no André, Paula Pais, na Tita, José Abrantes, desenhador, a espartana, mas pacientíssima, produtora Olga Toscano e J.C. Duarte, operador de imagem e Vítor Costa, “Propper”, médico e esteticista dos bonecos, se é que se assim o posso dizer.
Desde o primeiro minuto entendi que a versão portuguesa, para alguns, salvo honrosas excepções, atribuía protagonismo artístico principal aos actores de “carne e osso”. Isso tem, parece-me, a ver com a nossa realidade artística e mental, que pouco entendimento aí revela do projecto fundador, no qual tudo se adequa à realidade dimensional e existencial dos “muppets”; pessoalmente isso nunca me incomodou por aí além, pois tinha a convicção de que os principais destinatários do programa, as crianças, “corrigiam” naturalmente o erro. Para os adultos do nosso país, os personagens “muppets” (para usar a designação específica desta criação Jim Henson), engraçados que os achem, são os “bonecos” ou “fantoches”, carregados do sentido ligeiro e depreciativo que o povo lhes foi atribuindo. Quer isto dizer que os actores-manipuladores, para muitos, até “colegas de profissão”, leia-se actores de carne e osso e outros que gostam de se comparar e/ou qualificar, têm estatuto de segunda; quem pôde e quis perceber as exigências do trabalho de um actor manipulador percebe e reconhece que o mesmo exige algumas aptidões particulares, de longe se resumindo à ignóbil observação resumida no epíteto: “é só abanar o boneco”.
Esta triste realidade em que infelizmente acredito ainda persiste, e isso talvez explique, entre outras, algumas informações erróneas ou forjadas que por aí circulam, do género “eu era o Ferrão”, “aquele era ou é o Poupas”, coisas que, quem bem me conhece, nunca me ouviu dizer. Como atrás tentei explicar, o Ferrão era o Ferrão, e apenas mediei a sua existência.
Como o meu ego, por característica, não tem necessidade de se pôr em bicos de pés e muito menos de se pavonear, ignorei e tolerei certas pessoas e situações de que me fui apercebendo.Agora, e para terminar, situações como aquela que encontrei na wikipédia não admito e, por isso, tratei de a corrigir, parcialmente; na relação do elenco da Rua Sésamo apareciam uns fulanos, estranhos, pode-se dizer, no lugar tecnicamente que me pertence (ficha técnica), assim como a outros colegas. Emendei para o meu nome, tal como ao Luís Velez, no Poupas, mas poder-se-á, por ex., ainda encontrar um erro, um pouco menos grave, no caso da gata Tita. Por aqui também se infere que a wikipédia não é “bíblia”, em tempos que até a Bíblia, propriamente dita, se põe em causa.
Ali, por enquanto, e apenas ali, repus o respeito por um princípio básico. Cedo me apercebi, apesar da minha tumultuosa juventude, que a Rua Sésamo mal cabia em Portugal, ainda assim coube durante uns anos, não tivéssemos nós a faculdade de conseguir pôr o Rossio na Rua da Betesga. Talvez por não ter como se expandir, não obstante o mérito de alguns projectos nacionais mais modestos sequentes, não deixou fundações para uma “indústria” séria de entretenimento que pudesse apoiar outros projectos de maior fôlego, começando por valorizar todas as pessoas que fizeram isto ou aquilo e mais poderiam fazer.
Parafraseando o refrão de um tema de David Bowie, “This is not America”, no caso, infelizmente, referindo-me apenas àquilo que esse país tem de bom, pois é certo que por ali a fantasia é tão “trabalhada” como a realidade, se não mesmo, por vezes, misturadas, como bem sintetiza a Sesame Street. Por cá ficou um certo vazio, até agora não totalmente preenchido, e talvez por isso haja tanta gente saudosa; a RS será o mito sebastiânico da programação infantil portuguesa que, por isso mesmo, mal ou bem, ficou na história.
J. David
p.s. acabei de reparar que existe um grupo de amigos do agripino, esse vegetal maravilha "ferronicamente" manipulado.